quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Literatura periférica na sala de aula

O bom currículo de literatura tem mais que só textos canônicos. É importante apresentar linguagens e maneiras de contar histórias diversas.

Traços de oralidade misturados a termos da linguagem culta. Incorreções ortográficas, sintáticas ou de pontuação. Selo editorial desconhecido. Textos com pelo menos uma dessas características provavelmente não seriam escolhidos por você para trabalhar literatura com os alunos, certo? E se os autores de produções com alguns ou todos esses pontos, embora desconhecidos, fossem referendados por especialistas como donos de um estilo literário próprio e relevante? 

Se você está pensando que elogios e referências desse tipo são capazes de fazer qualquer um mudar de opinião, inclua na sua lista de autores admiráveis Ferrez, Sergio Vaz, Sacolinha, Alan da Rosa, Dinha e Rose da Coperifa. E seja bem-vindo ao universo da literatura marginal, movimento que atualmente reúne autores que têm berço nas periferias brasileiras, escrevem sobre temáticas diversas e se mantêm distantes das normas cultas propositalmente. "Por causa dessas características, não faz sentido avaliar toda e qualquer composição seguindo os critérios pertinentes à criação erudita", explica Heloisa Buarque de Hollanda, coordenadora do projeto Universidade das Quebradas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). São atitudes como essa, inclusive, que fazem a escola estigmatizar o gosto das pessoas e restringir o rol de leitura da moçada. "Não se trata de abandonar o estudo literário canônico, mas garantir espaço para outros", pontua Márcia Abreu no livro Cultura Letrada - Literatura e Leitura.  

A literatura marginal tem como característica a pluralidade, inclusive ao que se refere à gama de definições (leia na ilustração desta reportagem algumas delas). Ela não deve ser, por exemplo, tachada simplesmente de violenta ou de retrato da pobreza e da marginalidade, como costuma ocorrer. Esses temas fazem parte de seu repertório, mas não são os únicos. Cátia Cernov, no recém-lançado Amazônia em Chamas, por exemplo, reúne contos sobre ecologia. Rodrigo Ciríaco, em Te Pego Lá Fora, aborda o cotidiano escolar. Heloisa explica que, no início de carreira, os escritores marginais tendem a falar mais sobre sua realidade, a respeito do "próprio CEP", como eles mesmos definem. Mas muitos abordam outros temas depois. 

Para compreender o movimento, é importante saber que ele, na década de 1970, tinha motivações diferentes. De acordo com Heloisa, os autores daquela época, entre outras características, tinham por princípio fazer os próprios livros, o que nem sempre ocorre atualmente. "Era um movimento da contracultura e feito pela classe média", ela define.

Textos marginais, como muitos outros, requerem mediação

Ao promover o estudo de produções marginais, o professor tende a despertar o interesse dos alunos pelo hábito da leitura e amplia o repertório deles de várias maneiras (leia a sequência didática). A razão é o contato com os variados gêneros textuais marcados por temáticas geralmente cotidianas e com linguagem coloquial. Somam-se a isso termos e construções textuais diversificados e às vezes mais palatáveis e autores que não estão no panteão culto, aproximando a relação entre quem escreve e quem lê. Sem contar que esse tipo de proposta é capaz de revelar um caminho para reconhecer textos de qualidade, provocando a turma a eleger motivos para gostar deles ou não e atribuir adjetivos a determinadas produções.

De acordo com o pesquisador inglês Terry Eagleton, a literatura se caracteriza por transmitir emoção estética. E esse é um dos itens que devem permear a análise feita pelos estudantes a fim de que encarem o produto literário como um fenômeno cultural e histórico, que recebe elogios e críticas em diferentes épocas, de variados grupos sociais.

Porém isso tudo não pode abrir as portas da escola para qualquer texto marginal. Tal como em outras adjetivações literárias - infantil e feminina, por exemplo -, existem produções boas e ruins.

Mei Hua Soares, professora de Língua Portuguesa, chama a atenção para outro ponto. "Os alunos, por ainda serem pouco ou nada familiarizados com o universo literário, podem não perceber a função dos objetos de mediação usados pelo autor, como palavrões e distorções da realidade, e acabar rejeitando a obra. Ou, no extremo oposto, ainda ignorando a mediação, se identificar em demasia com ela e passar a fazer apologia descabida ao material", ela explica. Por isso, o papel do educador é tão importante nesse momento quanto diante de um texto de Machado de Assis (1839-1908).

É preciso ajudar os estudantes a comparar produções de naturezas diversas. Não com o intuito de mostrar como uma é inferior à outra, mas para que entendam como e por que diferentes grupos interpretam e registram questões muito semelhantes. E, é claro, para se despir de todos os preconceitos.
Os erros mais comuns
- Propor que a turma corrija os textos em relação à ortografia e à gramática presentes nos textos. Essa estratégia só reforça a ideia equivocada de que os escritores marginais não sabem escrever e encobre o estilo próprio de cada um.

- Oferecer textos marginais que retratem a vida na periferia para estudantes pobres, só porque eles se reconhecerão, ou para os mais abastados, só porque eles não conhecem essa realidade. O objetivo tem de ser apresentar um movimento literário.

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